Resenha -> Admirável Mundo Novo, por Aldous Huxley

Ao longo do tempo, a busca por uma sociedade ideal gerou teorias e obras ficcionais que imaginam e almejam a realização da utopia, o mundo perfeito. Pode-se afirmar que existe toda uma produção midiática dedicada às utopias. Contudo, a realidade do século XX trouxe à tona, ou ao menos tornou mais popular, o oposto das utopias: as distopias, o mundo absolutamente indesejável. O mesmo século XX transformou os sonhos utópicos em realidades distópicas. Por conta disso, e também de um certo cinismo, a produção de utopias diminuiu consideravelmente; em seu lugar, surgiu uma grande indústria de obras que exploram a distopia, incluindo “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. Da mesma forma, o reexame das outrora utopias fez com que algumas passassem a ser vistas como grandes distopias, inserindo-se aqui, até certo ponto, “A República” de Platão.

Na “A República” de Platão, as três partes da alma correspondem às três classes do Estado e à divisão do trabalho nele existente, sendo que cada uma dessas posições é educada segundo o que se supõe ser sua aptidão natural. A república é próspera porque, nela, a classe composta pelos magistrados é racional e detém o poder existente. A individualidade não tem lugar, assim como os laços familiares: desde cedo, as crianças são educadas para servir e pertencer ao Estado de acordo com seu papel.

Na obra de Aldous Huxley, também temos a divisão de castas, que igualmente corresponde à divisão social do trabalho e ao tipo de educação. Educação esta plenamente identificada com um caráter de doutrinação através de várias espécies de condicionamento. Mas diferente da “A República” de Platão, não existe aptidão natural, mas seleção artificial em uma sociedade em que os humanos agora são produzidos em série como mais um item de fábrica, mais um recurso a serviço do Estado.

Embora os objetivos e intenções dos dois autores sejam obviamente diferentes, afinal Platão buscava a utopia enquanto Huxley assumia a distopia, ambos têm algo em comum e de interesse. Ambas as obras se tornaram clássicas, corolários profundamente influentes dentro do seu círculo e mesmo além dele. Mas se filósofo grego busca construir uma teoria enquanto, Huxley queria uma obra de ficção como pano de fundo para suas ideias.

Falemos dos personagens principais. Aquele que deveria ser o protagonista, Bernard Marx, é Alfa-Mais, uma das castas superiores da sociedade, porém ele é divergente dos seus colegas de casta (possivelmente por uma falha de seu condicionamento como várias vezes é ressaltado na obra), sentindo-se deslocado e questionando algo dos valores do Estado Mundial. Lenina Crowne é da casta Beta, sendo uma pessoa superficial, viciada na cultura de consumo e no prazer instantâneo da droga SOMA (um dos meios de controle sociais empregados pelo Estado). John, “O Selvagem”, nasceu fora do sistema e é criado em uma reserva do mundo antigo, com valores e ideais contrastantes com os do Mundo Novo. Todavia os três personagens principais parecer ser apenas papéis feitos para contraste de perspectivas, correspondendo respectivamente ao divergente, ao cidadão médio do mundo novo, a criatura de uma época selvagem. Eles servem bem a história no propósito de transmitir as ideias pensadas pelo autor, mas são péssimos enquanto personagens, carecendo de desenvolvimento interno e na exploração de suas motivações. Sua vida é pouco ou nada interessante, dificultando o envolvimento do leitor com a narrativa. Por isso mesmo o “como” é transmitido as ideias do autor fica comprometido, pois o mundo, aquilo que a obra tem de mais interessante, é sempre ou quase sempre apresentado por meio de diálogos expositivos pouco naturais. O resultado é que as maiores qualidades de “Admirável Mundo Novo” são aquelas mais próximas de uma obra filosófica: a estrutura teórica daquele mundo, com seu modo de funcionamento e as ideias que o sustentam.

Mas talvez a falta de personalidades e de uma vida mais interessante aos personagens seja proposital, afinal o apagamento da individualidade em favor do coletivo é algo comum entre Platão e Huxley. Nas duas obras a arte é severamente controlada, devido ao seu caráter desviante da coletividade. Mas Huxley alcança o paroxismo deste apagamento com a reprodução maciça de gêmeos inférteis devidamente condicionados (algo inimaginável na Grécia antiga). As divergências são corrigidas. Se estas aparecem depois, através de indivíduos que se interessam em demasia por arte ou ciência, o sistema de uma forma ou outra os isola. Tudo em nome da ordem, da coletividade, da felicidade. A individualidade e suas consequências são retratadas como elementos do caos, portanto inimigos da ordem e da felicidade. O divergente deve ser punido porque a busca da desagradável verdade trará infelicidade. Ser feliz é uma obrigação social coletiva, por isso os freios morais tradicionais são suprimidos ou modificados, e o prazer sexual e químico do SOMA é banalizado. O que é banalizado deixa de ser autêntico, por isso perde seu caráter modificador e individualizador das personalidades. Devem já ter sido escritos tratados fazendo uma analogia do mundo das primeiras décadas do século XXI e a obrigação do ser feliz e a constante oferta de dopamina, mas não é o objetivo da resenha explorar tal comparação.

Se o resultado da república platônica é um sonho perfeito, pelo menos na intenção do filósofo, o resultado do mundo do escritor é um lugar onde “civilização é esterilização” (fala de um personagem), miséria, fome, guerra, arte e ciência genuínas, amor, são coisas sujas e devidamente esterilizados em conjunto com a morte da noção do indivíduo. Promessas similares, resultados similares, mas dois mil e quinhentos anos depois o sonho tenha se tornado pesadelo, ou nunca tenha sido de fato um sonho. A preocupação de Platão com a verdade talvez tenha evoluído em tempos mais cínicos como o século XX para como manipulá-la. Não sei se é isto que possa diferenciar definitivamente uma utopia de uma distopia, mas certamente Huxley soube colocar a tese na narrativa. E talvez “Admirável Mundo Novo” deva ser lido realmente mais como uma tese, devido aos seus já mencionados problemas enquanto ficção.

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