Resenha ->Palestina, por Joe Sacco

O filósofo Walter Benjamin faz uma análise da história e de como ela é contada. De um lado, existe uma história como ela é contada oficialmente: datas importantes, feriados que celebram heróis, decoram-se nomes de grandes políticos e heróis, as coisas são contadas em uma narrativa causal, sem possibilidades de que as coisas pudessem ser diferentes do que foram. Não existe imparcialidade. Cada vírgula posta é apenas a menor das escolhas jornalísticas, onde cada passo do processo de produção é guiado por um determinado olhar. Desde o momento em que é definida a transformação do fato em notícia até a escolha de palavras e a efetiva publicação, há a transmissão da notícia e de sua carga ideológica. Sacco não esconde isso, optando por uma clara escolha pelos palestinos. Eles são as vítimas de um processo que pode ser chamado de colonial que, como o também pensador Frantz Fanon destaca, envolve não apenas uma ocupação territorial, mas mental, que desumaniza o oprimido. A violência desse processo é o tema de Palestina.

A história contada pelos vencedores, os opressores, é repetida na maioria dos livros, filmes e celebrada em monumentos. Somos bombardeados com o noticiário e celebridades hollywoodianas nos falando de como os palestinos são terroristas. É tudo parte do jogo colonizador, pode-se dizer. Do outro lado, no entanto, existem pessoas mortas que nunca viveram, um trabalhador que faz protestos, um soldado que guerreia, uma mulher que se rebela. São pessoas sem nome, esquecidas, oprimidas por aqueles que venceram. Emprestar a voz para esses é um gesto de comprometimento na luta contra a opressão, permitindo não apenas que outro lado seja ouvido, mas toda uma história que poderia ter sido diferente. É o que Joe Sacco faz com maestria em sua obra Palestina. Longe de um tom impessoal, falsamente objetivo e da neutralidade covarde, o quadrinista conta histórias reais, com nomes reais, com tragédias reais. A história deixa de pertencer a quem se proclama vencedor, a história agora está aberta.

Toda essa teoria poderia ser apenas intenções se elas realmente não fossem passadas para o papel. Os quadrinhos são explorados plenamente em seu potencial dramático, sendo que no início há um tom nos desenhos bastante cartunesco, que gradativamente torna-se mais realista à medida que a obra avança. É como se houvesse um reconhecimento da realidade daquilo que não deveria ser real nos painéis onde prisões se tornam orgulho, tortura rotina, a morte um evento tão presente quanto respirar. A naturalidade da vida sob ocupação colonial assusta, algo só possível pela alienação e desumanização. A vida é atacada e precária em Khan Yunis, mas ela resiste em meio a toda destruição e esgoto a céu aberto. É a Palestina real atacada, bombardeada, invadida, saqueada, tomada.

Sacco reconhece-se como estrangeiro e por isso ao mesmo tempo dá o primeiro plano para os palestinos, mas é também um reconhecimento como personagem dotado de voz própria e que se incomoda com certas coisas, inclusive palestinas. Não há objetividade ou neutralidade, afinal. Sendo personagem ele antecipa a tosca crítica de que ouviu apenas um lado, dando ao final da obra um espaço para duas israelenses. Ao conversar com as moças ele percebe cansaço e contradição delas, dele e de toda uma perspectiva que depois de observar o lado palestino mostra-se propaganda sem lastro na realidade. Fechou-se um ciclo, mas não a história. O fim da obra poderia ser o fim de um capítulo, pois a história real ainda continua. Nesse sentido vale trazer a pergunta clichê sobre a obra de não-ficção ainda encontrar atualidade. Palestina poderia pular essa parte, infelizmente. Talvez seja seu único grande “defeito”. Nos milhares de dias dos mais de 30 anos passados de sua publicação original (a partir de 1993), milhares de vezes também ouvimos sobre terrorismo, ocupação, morte, mas também um pouquinho graças a Palestina passamos a ouvir um pouco mais sobre resistência.

Então se é verdade que os quadrinhos são comumente associados com a irrealidade da ficção jovem, algo que a própria obra reconhece, o seu potencial libertador no retrato da não ficção é óbvio em Palestina. Não é à toa que Sacco é considerado um dos fundadores e legitimadores (como se houvesse necessidade disso) do jornalismo em quadrinhos.

A edição lida foi a da Editora Veneta, reunindo todos os volumes originais, o prefácio original do grande Edward Said e textos do jornalista José Arbex Jr. Said traz sua perspectiva única de palestino e de autor que influenciou Sacco, enquanto Arbex traz mais contextualização (incluindo o mito da terra sem povo). Outros extras são fotos (coloridas!), desenhos e comentários de Joe Sacco a respeito da produção da obra, o que funciona quase um micro documentário sobre ela. A tradução boa ficou a cargo de Cris Siqueira. A edição vem em capa dura, dimensões de 27 x 1 x 18 cm, o que resulta em um volume relativamente alto e que pode não se encaixar tão bem em certas estantes como se encaixa na vida.

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